Justiça restaurativa na seara brasileira: uma análise a partir da aplicabilidade prática
Modifica paginaautori Marcelo Paes De Barros Pinto , Bruna Guesso Scarmagnan PAVELSKI , Diogo José Nucci quinteiro de SOUZA
O presente artigo objetiva compreender a relação dos agentes do direito brasileiro com a prática da justiça restaurativa, assim a partir do levantamento de questões sobre Justiça Restaurativa abrangendo o conhecimento, a interpretação, a funcionalidade e a aplicação da Justiça Restaurativa no país, buscou-se enfrentar o tema.
Restorative justice in the brazilian harvest: an analysis based on practical applicability
This article aims to understand the relationship of agents of Brazilian law with the practice of restorative justice, thus, from the survey of questions about Restorative Justice covering the knowledge, interpretation, functionality and application of Restorative Justice in the country, we sought to tackle the topic.Resumo: 1. Introdução; 2. Justiça restaurativa; 3. Relação dos agentes do direito com a justiça restaurativa; 4. Resultados da aplicabilidade da investigação.
1. Introdução
“É possível enfrentar a violência e a exclusão sem violência?” Pergunta Norberto Bobbio, em A era dos direitos (1992). A pergunta parece ousada e muitas vezes impertinente por parte da população mundial e, neste caso, brasileira.
Ao pensar o sistema vigente, conhecido como retributivo, considera-se a prática criminosa como uma violação ao Estado, definida por: tipicidade, descumprimento legal e culpabilidade, em sua interpretação mais basal. Neste caso, a Justiça determina a responsabilidade e administra a pena, sendo a vítima ouvida com o objetivo de obtenção de provas e dicotomicamente o ofensor a assumir o ônus. Muitas vezes sem sequer perceber como suas ações, de fato, ofenderam o tecido social que garante a paz, a democracia e os direitos humanos (BOBBIO, 1992). Já a Justiça Restaurativa, interpreta o crime como uma violação entre pessoas e seus relacionamentos.
Dá atenção ao contexto, propõe mediações, caminhos para o amparo à vítima e para responsabilização do agente criminal. Cria obrigações sociais sérias envolvendo agressor, vítima e sociedade em busca de soluções que envolvam reflexões, responsabilidade, reconciliação e segurança (NAÇÕES UNIDAS, 2021).
O presente artigo busca conhecer qual relação os operadores do direito brasileiro possuem com a prática da justiça restaurativa, a partir do levantamento de questões basais que coletaram dados quantitativos sobre o conhecimento, interpretação, funcionalidade e a aplicação da Justiça Restaurativa no país.
Assim, por do método hipotético dedutivo, resultados parciais demonstram que aproximadamente três quartos dos agentes do direito brasileiro (73,3%) nunca obtiveram contato com a justiça restaurativa em sua aplicação. Apesar disso, a grande maioria dos entrevistados (90%) demonstram conhecer e acreditar na capacidade da justiça de restauração em gerar resultados positivos para as partes envolvidas: vítima, agente criminoso, Estado e sociedade.
Quanto à sua aplicabilidade, 43,3% dos participantes declararam que a justiça restaurativa atua em partes ao que se propõe. Tal resultado sugere que pesquisas mais profundas neste âmbito merecem atenção, uma vez que podem demonstrar onde melhor se encaixa a atividade restaurativa e quais seus pontos positivos e quais nem tanto; permitindo uma análise concreta e eficiente do panorama da justiça restaurativa no cenário brasileiro.
2. Justiça restaurativa
A Justiça restaurativa, no cenário brasileiro, nos últimos anos, recebeu maior notoriedade por parte dos agentes do Direito e, por sua vez aplicabilidade. Nesse contexto, importante mencionar que se trata de um marco positivo para a justiça brasileira.
De acordo com Azevedo et al. (2014, p. 176), pode-se dizer que a “sua expansão em diversos países se deve a uma série de motivos comuns, como a crise de legitimidade do sistema penal, a busca de abordagens alternativas ao delito (ou conflito), as reivindicações das vítimas, etc”.
Todavia, segundo Costa (2015, p. 104) “o significado da Justiça Restaurativa plena advém, antes de tudo, de uma conquista lenta e gradual da sociedade moderna, de suas lutas por direitos frente ao poder e diante daqueles que exerceram e desempenham o seu domínio”, o autor preleciona que “pensar sobre a Justiça de Reparação é ter em mente que sua definição não é estanque, é um conceito construído gradualmente e o qual se visa conquistar”.
A denominação justiça restaurativa é atribuída a Albert Eglash, que em 1977, que escreveu um artigo intitulado Beyond Restitution: Creative Restitution, publicado numa obra por Joe Hudson e Burt Gallaway, denominada “Restitutionin Criminal Justice”. Eglash sustentou, no artigo, que haviam três respostas ao crime – a retributiva, baseada na punição; a distributiva, focada na reeducação; e a restaurativa, cujo fundamento seria a reparação (PINTO, 2010, p. 15).
Segundo Pinto (2010, p. 16):
A Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a restauração dos traumas e perdas causados pelo crime. Trata-se de um processo estritamente voluntário, relativamente informal, intervindo um ou mais mediadores ou facilitadores, na forma de procedimentos tais como mediação vítima-infrator (mediation), reuniões coletivas abertas à participação de pessoas da família e da comunidade (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles).
A justiça restaurativa é “um processo colaborativo que envolve aqueles afetados mais diretamente por um crime, chamados de partes interessadas principais, para determinar qual a melhor forma de reparar o dano causado pela transgressão” (DE JESUS, 2008, p. 97).
Nessa seara, cumpre destacar que “a Justiça de Reparação é baseada em valores, na ética e não nas leis. Esses valores estão investidos de Poder Normativo e, contidos, também, nos Direitos Fundamentais previstos constitucionalmente, os quais toda a comunidade almeja e espera que essa nova Justiça a alcance” (COSTA, 2015, p. 104).
Com efeito, “quando se analisa o contexto brasileiro, a crise de legitimidade do sistema penal ocupa um lugar de destaque e se manifesta através de indicadores como a falta de credibilidade e eficiência do sistema judiciário”, além disso, “o fracasso das políticas públicas de contenção da violência, o esgotamento do modelo repressivo de gestão do crime, déficits de comunicação e de participação agravados pelas práticas autoritárias das agências judiciais” (AZEVEDO et al., 2014, p. 176). É neste cenário que a justiça restaurativa se faz imprescindível. Isto porque,
a justiça restaurativa, em razão dos princípios e valores restaurativos, veicularia representações características de sociedades igualitárias, nas quais, diante da pressuposição da igualdade de posições e das naturais diferenças existentes entre os indivíduos, os conflitos são uma consequência normal da diversidade e da oposição inevitável de interesses, sendo previsíveis e constitutivos da ordem social, a qual deve ser construída através da sua administração (AZEVEDO et al., 2014, p. 181).
Neto (2008, p. 3) aduz que “incubada no processo de desregulamentação que mudou as relações entre Estado e sociedade, e obrigou os governos a simplificar, reduzir ou remover restrições, a Justiça Restaurativa se impôs como tema central dos debates acerca do futuro da Justiça”.
Desde o fim dos anos 1990, a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do Conselho Social e Econômico (ECOSOC), passou a recomendar a adoção da justiça restaurativa pelos Estados-membros. Nesta esfera, o marco inicial desta justiça na ONU foi a Resolução 1999/26, de 28/07/99, que preconizou sobre “Desenvolvimento e Implementação de Medidas de Mediação e Justiça Restaurativa na Justiça Criminal”, na qual o Conselho requisitou à Comissão de Prevenção do Crime e de Justiça Criminal que considerasse a desejável formulação de padrões das Nações Unidas no campo da mediação e da justiça restaurativa. Posteriormente, sobreveio a Resolução 2000/14, de 27/07/00, reafirmando a importância dessa tarefa. Assim, com a Resolução 2002/12, de 24/07/02 (NAÇÕES UNIDAS, 2011), foram incorporados os princípios básicos para a utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal.
No Brasil, contudo, “a sua implantação somente se deu em 2005, no âmbito de alguns projetos-piloto regionais e ainda há um grande caminho a ser percorrido até que a justiça restaurativa seja adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro” (JOÃO, 2014, p. 202).
Um dos marcos iniciais para a justiça restaurativa no Brasil foi o I Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, em abril de 2005, no qual foi formulada a Carta de Araçatuba, que enuncia os princípios do modelo restaurativo. Tal carta foi ratificada dois meses depois pela Carta de Brasília, assinada na Conferência Internacional "Acesso à Justiça por meios alternativos de solução de conflitos", organizada em Brasília pela Secretaria de Reforma do Judiciário, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).Contudo, a implementação de experiências restaurativas no Brasil se deu por meio do projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro” (Ministério da Justiça/PNUD), que por ocasião do Fórum Social Mundial, indicou três cidades como sedes para projetos pilotos, a saber: São Caetano do Sul (SP), Brasília (DF) e Porto Alegre (RS). O objetivo 203R. Defensoria Públ. União Brasília, DFn. 7p. 187-210jan/dez. 2014 desse projeto era o de acompanhar e avaliar o impacto da aplicação dos princípios da justiça restaurativa na abordagem das relações entre infrator, vítima e comunidade, além de fundamentar as práticas junto ao Sistema de Justiça Juvenil (JOÃO, 2014, p. 202-203).
Nessa dimensão, observa-se que a justiça restaurativa continua ganhando força, com designação explícita em documentos da ONU e na União Europeia, no sentido de ser aplicada em todos os países. A tendência é que mais países introduzam o modelo restaurativo em suas legislações, principalmente no cenário brasileiro.
Afinal, a “justiça restaurativa não significa uma resposta a todas as situações. Não visa substituir sistema legal vigente – o qual é guardião dos direitos humanos básicos e do Estado Democrático de Direito – mas de modo complementar, dar efetividade à implementação da justiça”, desta forma, contribuindo “para a construção de uma cultura de paz” (PRUDENTE; SABADELL, 2008, p. 60).
Corroborando, por exemplo, para e na dimensão penal, João (2014, p. 207) afirma que “tal adoção faz-se importante, pois a regulamentação da justiça restaurativa traria uma série de benefícios, tais como a diminuição da população carcerária, a recolocação da vítima em posição central no processo e uma maior preocupação com a reeducação dos ofensores “e, com isso, a “consequente redução das taxas de reincidência, conforme apontam diversos estudos a respeito de experiências restaurativas no Brasil e no mundo”.
Com isso, se faz indispensável que os agentes do Direito brasileiro tenham a consciência da importância da aplicabilidade desta ferramenta, razão pela qual passa abordar a relação destes agentes com a justiça restaurativa para, posteriormente, trazer à baila os resultados da investigação acadêmica realizada para este artigo.
3. Relação dos agentes do direito com a justiça restaurativa
No Brasil, a justiça restaurativa teve seu destarte no ano de 2005 com projetos piloto efetuados nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Distrito Federal a partir de parcerias destas localidades com Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Após 18 anos desta primeira iniciativa, a justiça restaurativa espalhou-se por diversos estados brasileiros colhendo experiências bem-sucedidas, sempre observando e respeitando os potenciais desafios locais e contextos comunitários próprios (SEMINÁRIO JUSTIÇA RESTAURATIVA, 2019).
Ainda de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, dentre as 39 iniciativas em que há a aplicação da rede de proteção da justiça restaurativa: 75% delas atuam na temática crianças e adolescentes, 48% na área de violência contra a mulher e 27% em áreas como o sistema penitenciário, justiça criminal, ambiente escolar, dentre outras (SEMINÁRIO JUSTIÇA RESTAURATIVA, 2019).
Para que o círculo da justiça restaurativa seja instalado, é necessário primeiro uma triagem nos casos em que determinados agentes do direito selecionam os casos que podem ser “contemplados” com a ação. A título de exemplo, toma-se o protocolo utilizado no Distrito Federal: a triagem tem início com o trabalho do delegado e seus agentes que de posse dos “termos circunstanciados de ocorrência”, que posteriormente é analisado pelo magistrado e por membro do Ministério Público (promotor) durante o preâmbulo da audiência. Após a proposta ser apresentada e as partes tenham intenção na participação nos círculos restaurativos, o processo é arquivado até que o relatório do círculo esteja concluído e então protocolado (ANUNCIAÇÃO, 2009).
Os processos para a implantação do núcleo restaurativo são distintos a depender da região e da legislação local. Contudo, de forma geral, a realidade brasileira carece da mesma necessidade: a falta de legislação específica e adequada para a aplicação da justiça restaurativa na resolução dos conflitos existentes entre as partes.
Neste sentido, de acordo com Macedo (2013), é de grande importância o projeto de Lei n० 7006/06 pois apresenta meios para o procedimento para uso da justiça restaurativa no âmbito penal e descreve em seu artigo 2º que:
O conjunto de práticas e atos conduzidos por facilitadores, compreendendo encontro entre vítima e autor do fato delituoso e, quando apropriado outras pessoas ou membros da comunidade afetados, que participarão ativa e coletivamente na resolução de problemas causados pelo crime ou pela contravenção, em um ambiente estruturado denominado núcleo de justiça restaurativa (BRASIL, 2006).
Sendo assim, entende-se que o entendimento de operadores do direito ganha uma nova interpretação, já que neste caso a interpretação de aplicação de justiça se amplia da já conhecida tríade magistrado, promotor e defensor (advogado); estendendo-se para outros profissionais das ciências sociais e a própria sociedade civil.
O próprio termo, justiça restaurativa, é interpretado de muitas formas por diversos agentes do direito. E sua relação, como o próprio estudo relata, pode apresentar posturas ambíguas sobre a funcionalidade e aplicabilidade desta forma de promover o que a sociedade compreende por justiça. Contudo, como característica intrínseca da sociedade, mudanças começam a ocorrer de forma pontual e então ganham campos mais amplos com adequações de acordo com os costumes e culturas locais.
Sendo assim, acredita-se que a justiça restaurativa, em seu sentido mais amplo, promove o encontro entre autor da atitude lesiva e vítima (seja ela considerada um sujeito ou mesmo uma comunidade); ampliando o conceito de agentes do direito e atualizando sua forma de atuação perante a justiça. Trazendo para o autor a consciência de seu ato para além da palavra crime, responsabilizando-o através da consciência do ato lesivo. Possibilitando também dessa forma, uma maior compreensão da necessidade de reparação dos danos causados (MACEDO, 2013).
Nesta relação, os agentes do direito também têm a oportunidade de agir mais assertivamente em relação à vítima. O que torna o conceito de justiça mais palpável do ponto de vista profissional e humanizado, já que não se ocupa unicamente com a pena, mas com a recuperação de um problema real, chamado vitimização ao mesmo tempo que oferece meios mais claros e objetivos no pensar sobre evitação da reincidência da postura criminal (AGUIAR, 2019).
Portanto, passa a discorrer no que tange aos resultados obtidos desta pesquisa do tema em testilha.
4.Resultados da aplicabilidade da investigação
O questionário desta pesquisa ficou exposto por 15 dias e foi respondido de forma remota somando 31 participações. Realizadas por estudantes e agentes do direito brasileiro, a partir da ferramenta digital mentimeter. Os participantes responderam a quatro questões estruturais sobre a justiça restaurativa: a) O participante já obteve contato com a justiça restaurativa em sua experiência jurídica? b) O participante considera que a justiça restaurativa atinge os objetivos ao que se propõe? c) O participante considera a justiça restaurativa para ambas as partes ou para apenas uma delas (neste caso, qual?)? d) Na opinião do participante, qual palavra pode definir/descrever a justiça restaurativa?
Resultados parciais demonstram que aproximadamente três quartos dos operadores do direito participantes (73,3%) nunca tiveram contato com a justiça restaurativa em sua aplicação. Apesar disso, a grande maioria dos entrevistados (90%) demonstram conhecer e acreditar na capacidade da justiça de restauração em gerar resultados positivos para as partes envolvidas: vítima, agente criminoso, Estado e sociedade.
Quanto à sua aplicabilidade, 43,3% dos participantes declararam que a justiça restaurativa atua em partes ao que se propõe. Tal resultado sugere que pesquisas mais profundas neste âmbito merecem atenção, uma vez que podem demonstrar onde melhor se encaixa a atividade restaurativa e quais seus pontos positivos e quais nem tanto.
Dada a pouca interação entre os participantes com a justiça restaurativa in loco, como os próprios resultados demonstram, é necessário olhar para uma ciência que merece mais espaço na resolução de conflitos no tocante à seara brasileira.
As citadas pesquisas a serem realizadas merecem atenção, uma vez que se torna clara a necessidade de disseminação do objetivo e meios da proposta “Justiça Restaurativa”, que por Konzen (2007) tem o propósito de dedicar-se em instalar novamente o valor da justiça, nas relações violadas pelo delito. Ainda que pese a importância do Código de Processo Penal brasileiro (Decreto-lei 3689/1941) e sua função, tornando-o como parte de um direito conjunto, uno e coeso de normas. É de grande importância que tais normas constitucionais, penais e processuais devam ser analisadas em harmonia com aspectos e diretrizes constitucionais (MACEDO, 2013), atingindo a paz social, restaurando o tecido da justiça que nos abrange enquanto sociedade e buscando resultados mais profundos em relação à humanização da vítima e responsabilização do autor quando busca funcionalidade em sua ação e, indiretamente, auxilia um sistema penal já bastante sobrecarregado.
A sugestão do presente trabalho para que novas pesquisas sejam necessárias para produção de conhecimento sobre o tema, fica evidente ao serem analisadas as respostas dos participantes que se mostram ambíguas quando a maioria dos participantes dizem acreditar na proposta da justiça restaurativa, mas menos da metade acredita em sua funcionalidade. Se faz importante iniciativas regionais, estaduais e nacionais para a execução de fóruns, congressos e espaços de publicação, por exemplo; para que mais operadores do direito, estudantes e membros do Ministério Público e Tribunais de Justiça possam compreender e apropriar-se dos princípios, origens e aplicabilidades da ferramenta apresentada neste estudo.
No questionário, a questão que solicitou aos participantes que sintetizem a prática da justiça restaurativa em apenas uma palavra, pode inferir-se que nesta prática há um movimento que interpreta a questão no resgate da prática de justiça que não está fixada em sua prática punitivista. De posse dos resultados: 93 respostas, aproximadamente 8,95% foram as palavras perdão e justiça; seguidas por: superação (4,30%), empatia e acordo (3,22%). De posse desta participação, é pertinente sugerir que os operadores participantes compreendem que, no atual cenário, a ciência jurídica deve valer-se dos saberes de outras áreas de conhecimento para que se possa interpretar e dimensionar de forma mais abrangente a complexidade das relações humanas que são trabalhadas no âmbito judiciário. Aspectos mecânicos trazidos pela ampla demanda e jurisprudência, já concretizada, impede a ocorrência de debates entre os envolvidos, causando rigidez ao processo e desumanização no trato das situações da vida (AGUIAR, 2009).
Ainda analisando as respostas desta questão, encontramos olhares dicotômicos nas participações quando existe o surgimento de respostas como: conciliação, responsabilidade, diálogo, mediação, oportunidade, conscientização, resiliência, escuta, restauração, equilíbrio; junto de palavras como injustiça, constrangimento, negligência e revitimização.
Sugere-se a partir de tais participações que pesquisas mais profundas devam ser realizadas para que seja possível compreender a interpretação da justiça restaurativa para operadores da área. Seriam essas: é possível aplicar os princípios da justiça restaurativa de forma extensiva? Quais seriam as condições de implementação da justiça restaurativa no âmbito físico e de recursos humanos na já existente justiça retributiva? Quantos mediadores e quais as formações destes seriam necessários para o processo? Qual seria o processo decisório caso o consenso não fosse atingido? Seria possível a justiça restaurativa tornar-se uma ferramenta que viola o devido processo legal onde se percam direitos processuais penais? E por fim, como garantir critérios como independência e imparcialidade do julgador preservando proporcionalidade nas sentenças?
Tais questões levantadas, permitiram que, para além dos próprios participantes, outros autores poderiam publicar suas reflexões tornando a prática da justiça restaurativa um “fazer justiça” mais robusto, humano e assertivo. Atingindo aspectos do universo jurídico que buscam o real objetivo da prática: a restauração do tecido social da justiça, ao dar fala ao autor do delito compreendendo suas motivações e atribuindo a responsabilidade ao bem jurídico lesionado e à vítima ao permitir a vazão de seus sentimentos, possibilidade de superar sua posição e os traumas causados pelas circunstâncias em que esteve envolvida.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando que a justiça restaurativa tem se impulsionado no cenário brasileiro a cada ano, a presente pesquisa buscou avaliar, por meio de questionários on-line, a relação prática e técnica dos agentes do Direito em face a aplicabilidade deste sistema. Com efeito, permitiu concluir que aproximadamente três quartos dos agentes do direito brasileiro (73,3%) nunca obtiveram contato com a justiça restaurativa em sua aplicação. Apesar disso, a grande maioria dos entrevistados (90%) demonstram conhecer e acreditar na capacidade da justiça de restauração em gerar resultados positivos para as partes envolvidas: vítima, agente criminoso, Estado e sociedade.
Quanto à sua aplicabilidade, 43,3% dos participantes declararam que a justiça restaurativa atua em partes ao que se propõe. Tal resultado sugere que pesquisas mais profundas neste âmbito merecem atenção, uma vez que podem demonstrar onde melhor se encaixa a atividade restaurativa e quais seus pontos positivos e negativos; permitindo uma análise concreta e eficiente do panorama da justiça restaurativa no cenário brasileiro.
Denota-se ainda que desde o fim dos anos 1990, a ONU, por meio do Conselho Social e Econômico (ECOSOC), passou a recomendar a adoção da justiça restaurativa pelos Estados-membros. Nessa dimensão, entende-se que o Brasil deve caminhar também nesta frente, buscando mais políticas educacionais e informacionais, visando a conscientização da importância da aplicabilidade deste sistema restaurativo, nomeadamente, aos agentes do Direito. Além disso, políticas para a formação e escorreita aplicabilidade da justiça restaurativa. Nesse ínterim, a academia, os doutrinadores e a justiça, por meio do CNJ, têm deixado um legado importante na esfera brasileira, tendo em vista que a justiça restaurativa teve seu destarte no ano de 2005 com projetos piloto efetuados nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Distrito Federal e, a partir de parcerias destas localidades com Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
Portanto, a justiça restaurativa deve continuar sendo difundida por meio de políticas para tanto, haja vista as experiências bem-sucedidas, que respeitam as particularidades locais e contextos comunitários de cada região brasileira, sem olvidar da necessidade da matéria ser regularizada na via legislativa.
REFERÊNCIAS
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ANUNCIAÇÃO, Carla Carolina Pinheiro. Figuras de Justiça: trajetórias dos jovens em práticas de justiça restaurativas. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009.
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