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Pubbl. Sab, 10 Feb 2024

A lei dos Juizados Especiais Criminais como forma de participação da vítima no processo penal e concretização da justiça restaurativa

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autori João Felipe Da Silva ,



A vítima encontra-se inserida na relação criminal desde a própria gênese do crime, cuja trajetória desenvolve-se desde momentos de protagonismo ao total esquecimento pelo sistema jurídico para chegar ao atual patamar denominado redescobrimento. O presente artigo aborda o movimento vitimológico de redescoberta da vítima, após haver sido tratada como mero objeto de informação para a persecução penal, sem maiores preocupações legislativas com suas necessidades surgidas por conta da ocorrência delituosa.


ENG

The Special Criminal Courts Law as a means of victim participation in criminal proceedings and the realization of restorative justice

The victim is inserted in the criminal relationship from the very genesis of the crime, whose trajectory develops from moments of protagonism to total oblivion by the legal system to reach the current level called rediscovery. This article addresses the victimological movement of rediscovery of the victim, after being treated as a mere object of information for criminal prosecution, without major legislative concerns with their needs arising from the criminal occurrence.

INTRODUÇÃO

A vítima está presente na relação delitiva desde a própria existência do crime, passando por momentos de protagonismo ao total esquecimento pelo sistema jurídico para chegar atualmente ao estágio de redescobrimento.

A presente pesquisa analisa o movimento vitimológico conhecido como a redescoberta da vítima, após período no qual foi tratada como mero objeto de instrução probatória, sem qualquer preocupação legislativa com seus anseios e necessidades frente à ocorrência delituosa. Para tanto, analisa-se o tratamento constitucional da vítima de delito perante o sistema jurídico pátrio e o desenvolvimento da Vitimologia, ciência dedicada ao estudo da vítima, bem como a existência do direito fundamental da vítima ao amparo estatal.

Nesse sentido, o desenvolvimento da Justiça Restaurativa no país caminha junto à necessária retomada do papel da vítima no processo penal, tratando-se de um conjunto sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato são solucionados de modo estruturado.

A implementação da Justiça Restaurativa passou a ser tratada como política pública pelo Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle externo do Poder Judiciário, criado a partir da Emenda Constitucional nº 45 de 2004. A Política Pública Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário está traçada na Resolução nº 225/2016 do aludido Conselho e tem por objetivo a consolidação da identidade e da qualidade da Justiça Restaurativa definidas na normatização, a fim de que não seja desvirtuada ou banalizada.

Por sua vez, a Lei nº 9.099/1995, denominada Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais foi promulgada com o fito de dar maior celeridade para causas que teoricamente são mais simples por envolver infrações penais de pequeno potencial ofensivo e, portanto, não demandam a utilização dos procedimentos mais morosos, previstos nos códigos de processo civil e penal, trazendo assim aos jurisdicionados um sentimento mais próximo da realização da justiça.

Refere-se ainda a atendimento aos reclamos dos movimentos vitimológicos, que em certa medida buscam um modelo consensual de justiça, com maior participação da vítima na solução da lide penal e na reparação dos danos a que tem direito, atribuindo-lhe eficácia penal despenalizadora.

A Lei n. 9.099/95 representou um verdadeiro marco no processo penal brasileiro, uma vez que, rompeu com a estrutura tradicional de solução dos conflitos e estabeleceu substancial mudança na ideologia até então vigente por intermédio da utilização de medidas despenalizadoras que inauguraram um novo paradigma no tratamento da violência.

Trata-se do processo consensual que surge como um novo modelo, na busca pela solução dos conflitos por intermédio de instrumentos aptos a conduzir as partes para uma ideia mais próxima de realização de justiça, ou seja, permitindo-se que os envolvidos no litígio possam, de forma célere e menos formal resolverem sua contenda.

  1. DESENVOLVIMENTO DA VITIMOLOGIA.

Apesar de a criminologia desenvolver-se há séculos, fruto da preocupação aprofundada de estudiosos com um fato da vida extremamente comum, qual seja a ocorrência de crimes e as razões que os motivam, a vitimologia possui raízes bem mais recentes, localizadas no período histórico imediatamente posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial.

De fato, como exemplo, é possível vislumbrar já nas legislações dos povos antigos como na Babilônia, no Oriente Médio, no Direito Mosaico, no Direito Grego e no Direito Romano certa preocupação com a vítima.

Nessa toada, a vítima passou por momentos de acentuado protagonismo durante a persecução penal, para em seguida ver a sua participação no processo de punição do criminoso confiscada pelo Estado.

Luis Rodríguez MANZANERA (2002, p. 12) leciona que esse movimento penal é centrado no estudo do homem desviante, antissocial, e o berço do surgimento da criminologia que em seu esforço pela completa compreensão do criminoso desprezou a figura da vítima.

Explica também que se trata de muito mais de uma questão de prioridades do que um esquecimento malicioso da vítima. Significa que naquele momento histórico o estudo do criminoso, trabalhado ao um nível individual fazia-se mais urgente do que a compreensão da vítima.

A situação resultou com o criminoso de um lado estudado, sancionado, tratado, protegido e de outro lado a vítima que somente fez jus a escassas menções e fora de qualquer pauta de análise mais aprofundada, ou seja, não há razões para que a vítima alegre-se uma vez que jamais atingiu tamanho grau de compreensão e atenção.

Atualmente, a doutrina aborda o movimento de redescoberta da vítima, no Brasil demonstrado por diplomas legais que inauguram maior participação da vítima e denotam, em certa medida, a maior preocupação estatal com a questão, resta perquirir sobre a efetividade e satisfatoriedade de tais medidas.

Essa fase de redescobrimento coincide com a maior preocupação com as questões atinentes à vítima, historicamente situada, segundo Vanessa De Biassio MAZZUTTI (2012, p. 61), em fins do século XIX, quando “(...) vários congressos internacionais passaram a abordar o tema de proteção e indenização das vítimas de delitos (...)”.

Tamara Ariane Gallo da SILVA (2013, p. 4) assevera que a dita redescoberta da vítima tem como fato impulsionador os crimes praticados pelo nazismo, já que passou-se a dedicar maior atenção aos estudos ligados à vítima com o aprofundamento do interesse dos criminólogos sobre como viveriam e o que estava sendo feito pelas pessoas vitimizadas durante a Segunda Guerra Mundial.

    Saliente-se que esse novo momento da vítima não persegue nem o retorno à vingança privada, nem a quebra das garantias para os delinquentes: a vítima quer justiça. 

A vitimologia vem, efetivamente, conferir novo status à vítima, contribuindo para redefinir suas relações com o delinquente, com o sistema jurídico, com as autoridades, etc.

Portanto, a fase de redescoberta da vítima encontra-se atualmente em fase de maturação, inclusive no Brasil, uma vez que é possível encontrar no arcabouço jurídico nacional diplomas legais que apresentam lampejos de um maior cuidado no trato da vítima.

  1. O TRATO DA VÍTIMA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

No que diz respeito à Constituição Federal de 1988, esta é símbolo máximo da redemocratização do Brasil, após os “anos de chumbo” que representaram o período ditatorial.

Após o longo período de vinte e um anos de regime militar ditatorial que perdurou de 1964 a 1985 no País, deflagrou-se o processo de democratização no Brasil. Ainda que esse processo tenha se iniciado, originariamente, pela liberalização política do próprio regime autoritário — em face de dificuldades em solucionar problemas internos  —, as forças de oposição da sociedade civil se beneficiaram do processo de abertura, fortalecendo-se mediante formas de organização, mobilização e articulação, que permitiram importantes conquistas sociais e políticas. A transição democrática, lenta e gradual, permitiu a formação de um controle civil sobre as forças militares. Exigiu ainda a elaboração de um novo código, que refizesse o pacto político-social. Tal processo culminou, juridicamente, na promulgação de uma nova ordem constitucional — nascia assim a Constituição de outubro de 1988. (PIOVESAN, 2013, p. 168).

Segundo a constatação de Rodrigo PADILHA (2014, p. 105), a atual Constituição é, antes de mais nada, uma carta de esperança por dias melhores que abarca direitos nunca antes tratados em textos constitucionais pátrios.

Trata-se da Carta mais completa da história brasileira no que concerne aos direitos individuais, coletivos e sociais e às medidas judiciais aptas a proteger esses direitos.

Por tratar-se de retorno à democracia e tendo em vista as afrontas aos direitos fundamentais vivenciados durante a ditadura, o texto constitucional de 1988 estabelece extenso rol de direitos em seu artigo 5º e em demais dispositivos dispersos pela Constituição.

A essa luz, a rigor, só a Carta Política de 1988 pode ser considerada uma Constituição verdadeiramente espontânea, porque foi feita de baixo para cima e de fora para dentro, sendo todas as demais ou impostas por déspotas — uns pouco, outros nem tanto esclarecidos —, ou induzidas por tutores intelectuais, que não nos consideravam crescidos o bastante paia caminharmos com as próprias pernas e traçarmos o nosso destino. (MENDES, 2009, p. 205).

Tendo em vista que a Carta de 1988 promoveu a institucionalização de um regime político democrático no país, destaca-se o fato de que também introduziu avanço inédito na consolidação dos direitos fundamentais por intermédio da lei, dedicando especial atenção para setores sociais mais vulneráveis.

Sob a nova égide constitucional os direitos fundamentais são dotados de altíssimo relevo, cabendo inclusive a afirmação de que a atual Constituição é o documento mais amplo e detalhado em relação à temática já visto no Brasil.

Flávia PIOVESAN (2013, p. 172) enfatiza o alargamento do tema referente aos direitos fundamentais promovido pela Lei Fundamental de 1988, o que a colocou entre os diplomas jurídicos mais avançados do mundo nessa seara.

Significa que toda o sistema jurídico de cariz constitucional e infraconstitucional deve orientar-se para a concretização dos valores individuais e sociais da pessoa humana, escolhendo a dignidade da pessoa humana como diretriz essencial que lhe preenche com unidade de sentido.

A Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988 restaurou a preeminência do respeito aos direitos individuais, proclamados juntamente com significativa série de direitos sociais. O Estado se comprometia a não interferir no que fosse próprio da autonomia das pessoas e a intervir na sociedade civil, no que fosse relevante para a construção de meios materiais à afirmação da dignidade de todos. (MENDES, 2014, p. 423).  

A eficácia constitucional passou então a espraiar-se para todas as áreas da ciência jurídica e, a partir de então qualquer norma infraconstitucional somente pode gozar de validade se estiver conforme os ditames constitucionais, sobretudo aqueles referentes aos direitos fundamentais.

À luz dessa concepção, infere-se que o valor da dignidade da pessoa humana e o valor dos direitos e garantias fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. (PIOVESAN, 2013, p. 176).

A constitucionalização da salvaguarda de direitos coletivos e difusos também é novidade digna de nota, pois revela a menção a novos sujeitos de direitos e ao aumento de bens jurídicos merecedores de tutela, o que afasta peremptoriamente a superada visão de individualidade na titularidade dos direitos fundamentais consagrados no texto constitucional.

Inegável que se está diante de uma Constituição dirigente, possuidora de dispositivos extremamente abertos que dependem da atuação do legislador infraconstitucional para implementação dos direitos.

Um dos dispositivos constitucionais de maior relevância para a vítima encontra-se no artigo 245 da Constituição Federal de 1988, localizado no Título IX, que prevê a obrigação do Estado de prestar assistência para aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso[1].

A disposição constitucional em comento não está imune à críticas, uma vez que pressupõe a ocorrência de crime doloso, excluindo a responsabilidade estatal nos crimes culposos que, vias gerais, são tão prejudiciais quanto aqueles.

Pressupõe ainda a ocorrência de morte da vítima como requisito para a possibilidade de atuação assistencial do Estado, fato este que, aliado ao baixo número de solução dos casos envolvendo condutas dolosas e mortes no Brasil dificulta a efetivação do direito fundamental da vítima ao amparo estatal.

Marisa Helena D’Arbo Alves de FREITAS (2011, p. 10) destaca o fato de que o dispositivo constitucional sob comento também deixou de mencionar direitos inerentes à vítima em si, circunstância que causa estranheza, chamando a atenção pela má técnica legislativa.

Aliado a essas situações, pesa ainda como crítica o fato de tratar-se, segundo alguns doutrinadores, de norma constitucional de eficácia limitada, ou seja, que aguarda por regulamentação infraconstitucional não realizada até o presente momento. 

No entanto, conforme o aduzido acima, questões como a proteção da dignidade da pessoa humana e a efetivação dos direitos fundamentais em todas as suas dimensões permeiam todo o texto constitucional de 1988, de forma que os assuntos atinentes à proteção da vítima ali encontram-se encampados.

Não se pode perder de vista que a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais são preceitos constitucionais de eficácia imediata, conforme disposição do artigo 5º, § 1º da Lei Maior de 1988.

Assim, ainda que o artigo 245 não goze de regulamentação infraconstitucional, o mesmo é plenamente aplicável, haja vista que a sua eficácia pode ser promovida com base nos valores da pessoa humana resguardados pela nova ordem constitucional.

Da mesma forma é possível vislumbrar-se a possibilidade de atuação do Estado na criação de políticas públicas aptas a saldar o atual débito havido com a vítima de delitos, pois a efetivação dos direitos fundamentais da vítima é parte do objetivo maior estatal de efetivação de todas as formas de proteção da pessoa humana.

  1. A LEI Nº 9.099/1995, INSTITUIDORA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS

A Lei nº 9.099/95 instituiu os juizados especiais cíveis e criminais no âmbito dos Estados da Federação com o fito de dar maior celeridade para causas que teoricamente são mais simples e, portanto, não demandam a utilização dos procedimentos mais morosos, previstos nos códigos de processo civil e penal, trazendo assim aos jurisdicionados um sentimento mais próximo da realização da justiça.

A edição da referida lei segue o mandamento constitucional insculpido no artigo 98, Inciso II da Constituição Federal de 1988 que também estabelece os seus princípios regentes.

Refere-se ainda a atendimento aos reclamos dos movimentos vitimológicos, que em certa medida buscam um modelo consensual de justiça, com maior participação da vítima na solução da lide penal e na reparação dos danos a que tem direito, atribuindo-lhe eficácia penal despenalizadora (FREITAS, 2011, p. 15).

Aury LOPES JÚNIOR (2014, p. 517), explica que a Lei n. 9.099/95 representou um verdadeiro marco no processo penal brasileiro, uma vez que, rompeu com a estrutura tradicional de solução dos conflitos e estabeleceu uma substancial mudança na ideologia até então vigente por intermédio da utilização de medidas despenalizadoras que inauguraram um novo paradigma no tratamento da violência.

Especificamente no campo dos juizados especiais criminais, estes possuem competência para o julgamento dos casos envolvendo os crimes de menor potencial ofensivo, assim entendidos de acordo com o artigo 61 da Lei 9.099/95, as contravenções penais e os crimes cuja pena máxima não supere os dois anos.

Trata-se do processo consensual que surge como um novo paradigma, na busca pela solução dos conflitos de competência da lei sob análise por intermédio de instrumentos aptos a conduzir as partes para uma ideia mais próxima de realização de justiça, ou seja, permitindo-se que os envolvidos no litígio possam, de forma célere e menos formal resolverem sua contenda.

Como instrumentos de realização da justiça consensual destacam-se a mediação, a conciliação e a negociação (MAZZUTTI, 2012, p. 95).

A lei sob comento foi responsável pela implementação de uma sistemática mais simples e célere, no intuito de facilitar o acesso à justiça, assim como descongestionar o Poder Judiciário, já há muito combalido pelo excessivo número de processos.

No que tange à proteção da vítima e sua participação no processo, a aludida legislação especial representa o que alguns doutrinadores denominam de “redescoberta da vítima”, ou ainda, segundo Marcelo Gonçalves SALIBA (2009, p. 114) “revitalização da vontade da vítima” pela qual a maior preocupação deixa de ser a punição (em seu sentido estrito) do infrator e passa a ser a indenização/recomposição da vítima pelos prejuízos causados devido à prática delituosa.

Estabeleceu o legislador que o juiz deve, sempre que existir dano, buscar a composição civil, destacando que a composição civil implica renúncia ao direito de queixa ou representação. Fica clara a intenção do legislador de estimular a composição civil e por consequência a reparação do dano, pois o autor do fato, não aceitando a composição, fica sob o risco da ação penal, preferindo muitas vezes realizar o acordo civil a sofrer a sanção penal. (BREGA FILHO, 2013, p. 5).

A revitalização da vontade da vítima pode ser compreendida como a privatização do conflito penal, ou seja sua devolução à esfera particular para que ali haja livre disposição e discussão das partes interessadas, ou seja, vítima e ofensor (SALIBA, 2009, p. 114).

Heitor PIEDADE JÚNIOR (2007, p. 261) afirma que a vítima teve seu status de cidadã reconhecido, contemplada com maior participação na dinâmica do feito processual e com efetivo respeito aos seus direitos.

Sem perder de vista a pretensão indenizatória da vítima, a Lei nº 9.099/95 instituiu a “composição dos danos civis” nos artigos 74 e 75, de forma que havendo acordo entre imputado e vítima, com vistas à reparação dos danos decorrentes do delito, este gera um título executivo judicial, plenamente exigível no caso de descumprimento do acordo (LOPES JÚNIOR, 2014, p. 519).

A composição dos danos civis poderá anteceder a fase processual ou ocorrer na audiência preliminar, situação em que deverão se fazer presentes a vítima e o réu, ambos acompanhados de advogado.

O acordo civil de composição dos danos, realizado entre o autor do fato e o ofendido, passou a constituir forma institucionalizada de solução do conflito penal, instaurado com a prática de infração de menor potencial ofensivo de ação penal pública condicionada e de ação penal de iniciativa privada. (FREITAS, 2011, p. 15).

A possibilidade de realização de acordo na fase pré-processual é vista por Antônio Scarance FERNANDES (2001, p. 6) como a consagração do princípio da participação da vítima no processo criminal, ressaltando o fato de que no caso de homologação judicial do referido acordo, estão desde logo declinados os direitos de representação e de queixa por parte da vítima.

Por óbvio que o Estado não se afasta completamente da resolução dos processos nos juizados especiais, especialmente pelo fato de que qualquer delito é também uma agressão à sociedade como um todo considerada.

Entretanto, deve o órgão jurisdicional incentivar a conciliação (composição civil dos danos) e, caso a mesma se realize, homologar o acordo e fiscalizar o seu cumprimento.

A lei 9.099/95 instituiu no Brasil a suspensão condicional do processo. Por este instituto, o processo fica suspenso pelo prazo de 02 a 04 anos e o autor do crime tem de cumprir algumas condições. Entre elas está a reparação do dano à vítima (art. 89, § 1º, I). Fica evidente, mais uma vez, a intenção do legislador de incentivar a reparação do dano e vincular alguns benefícios a sua ocorrência. (BREGA FILHO, 2013, p. 5).

Na sistemática desses juizados a vítima passou a gozar de uma condição de indispensabilidade para a solução dos conflitos, haja vista a possibilidade de conciliação com o seu ofensor, fato este que dá ares de protagonismo aos reais envolvidos no conflito e, como consequência os mais interessados na sua solução mais célere e menos traumática possível (MAZZUTTI, 2012, p. 97).

Certo que por mais incentivada que seja a conciliação, a vítima não está obrigada a aceita-la, assim como tampouco o está o ofensor. Essa possibilidade de escolha atribuída a vítima: ou concilia-se com o infrator ou, conforme o caso oferece representação na ação civil pública condicionada ou apresenta queixa crime nos casos de ação penal privada denota aquilo que foi denominado de redescoberta da vítima.

O acordo para composição dos danos não possui características de pena e conforme lição de Marisa Helena D’Arbo Alves de FREITAS (2011, p. 18),

“O acordo entre ofensor e ofendido, que se dá no Juizado Especial Criminal, conduzido por conciliador - juiz ou pessoa leiga -, antecede à existência de processo em juízo e a sua celebração implica em extinção de punibilidade, impedindo a persecução penal em juízo”.

Importante ainda o fato de que, de acordo com o artigo 89 da Lei nº 9.099/5, a concessão da suspensão condicional do processo está adstrita à reparação dos danos pelo imputado ou a comprovação de sua impossibilidade de fazê-lo.

Significa que a legislação em tela dá visibilidade à vítima enquanto pessoa merecedora de respeito à sua dignidade e à sua liberdade de escolher o que mais lhe aprouver conforme o caso concreto. 

Para que a Lei dos Juizados Especiais possa atingir seus fins de descongestionamento do Poder Judiciário e facilitação da reparação dos danos sofridos pela vítima se fez necessária a adoção de um microssistema calcado em formas simples com forte utilização da oralidade e da economia processual.

Aliado a tais características e tendo em vista que a lei ocupa-se da criminalidade de menor monta é imperioso que haja a maior interação possível entre ofendido e ofensor para que, sendo praticável no caso concreto, possam chegar a um acordo no que toca ao quantum indenizatório a ser pago para a vítima.

Percebe-se que a Lei nº 9.099/95, apesar de apresentar algumas falhas no trato com a vítima em muito melhorou os mecanismos para sua participação mais ativa no desenrolar do processo penal (cujo objetos são os crimes de menor lesividade), assim como tem por objetivo maior fomentar na sociedade o sentimento de realização da justiça, dessa vez com a participação direta dos envolvidos no litígio penal.

4. A LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS COMO REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

O modelo de Justiça Restaurativa apresenta-se como um paradigma redefinidor da concepção institucional de que a solução do conflito penal somente pode advir da intervenção verticalizada do Estado, de modo que sob o aludido paradigma, a justiça pode ser concebida como uma experiência arquitetada de forma horizontal e dialógica, tomando-se por alicerce a participação direta dos envolvidos no evento delituoso, analisado sob a perspectiva vitimológica que inclui a vítima como sujeito indispensável para a concepção de delito.

Em relação à cidadania, a justiça restaurativa pressupõe que o exercício desta depende do empoderamento e do compartilhamento de responsabilidades, para que os sujeitos se percebam como agentes relacionais capazes de promover mudanças na realidade. O conflito é tido como uma oportunidade de tensionar as convicções e preconceitos e de viabilizar a construção de respostas a partir do diálogo, do respeito mútuo e da corresponsabilização. (2020, BONAVIDES e SILVA).

Nessa toada, há que se ponderar que os ordenamentos jurídicos colocam-se como a resposta estatal organizada à necessidade de cooperação e existência mesma da sociedade, haja vista que o modelo clássico de solução de conflitos abomina a solução privada das querelas, o que poderia gerar uma espécie de vingança institucionalizada e nociva para o convívio social minimamente sadio.

Essas ideias de uma monopolização estatal da solução dos conflitos adquiriram status de dogma quase que inquestionável acerca das funções jurisdicionais que subtraíram das partes o poder de decisão no caso concreto, o que nem sempre leva ao sentimento de realização da justiça, notadamente no que concerne às vítimas de delitos.

Assim sendo, a lógica punitivista e a própria pena acabaram por tornar-se objeto de questionamento, no sentido da sua eficácia enquanto fomentadoras do precitado sentimento de justiça e da tão desejada pacificação social.

O crime, como experiência que rompe com uma cadeia de expectativas, passa a ser simplificado por uma lógica binária de bem e mal, que facilita a aceitação social de respostas destrutivas em face aos seus supostos autores. Essas respostas, geralmente na forma da violência policial, da privação de liberdade e de seus efeitos estigmatizantes13, degradam os direitos fundamentais da sociedade como um todo, pois aqueles que clamam pelo aumento da severidade punitiva se veem afetados por cada vez mais controle estatal. (2020, ACHUTTI, DIVAN E SILVA).

O modelo purista de Justiça Restaurativa pauta-se na participação voluntária do agente do delito e da sua vítima, como figuras indispensáveis à restauração que se almeja atingir, havendo a extensão da voluntariedade ao dever de observar a reparação que seja avençada entre ambos como fruto de uma interação dialógica entre o infrator e o ofendido, atuando essas pessoas como verdadeiros protagonistas na construção da resposta ao delito, não se descurando da necessidade de intervenção ou supervisão estatal, realizada por intermédio de agentes treinados nas técnicas de negociação, mediação e conciliação.

A intervenção estatal menos incisiva e mais discreta auxilia na ressignificação dos fatos ocorridos, bem como na desconstrução de traumas e temores que o delito possa ter causado na vítima e que possam ser a fonte da conduta criminosa praticada pelo ofensor, cujas bases são o compartilhamento de narrativas e da exteriorização de suas necessidade e expectativas com relação ao evento delituoso.

Portanto, é comum dizer que, embora o modelo purista não rejeite e inclusive englobe a reparative theory, seu enfoque principal está vinculado aos pressupostos da encounter theory, que compreende a experiência dialógica e a alteridade como as principais forças motrizes responsáveis por eventual restaura-ção, a qual se concretiza mediante a responsabilização do ofen-sor, a expressão dos participantes e a compreensão das causas e consequências do crime (2020, BONAVIDES e SILVA).

 

Nesse aspecto, verifica-se que a Lei dos Juizados Especiais Criminais é campo fértil para o desenvolvimento de uma política pública restaurativa, já que em sede de audiência preliminar, o agente conciliador tem a oportunidade de, ouvidas ambas as partes, propor solução ao conflito e abrir o diálogo para que infrator e ofendido possam expor suas razões e juntos chegarem a termos no que concerne ao fato criminoso ocorrido.

Conforme já aduzido acima, a solução construída com a participação dos envolvidos no conflito, sob um modelo purista de Justiça Restaurativa permite o desafogameto do Poder Judiciário, evitando que novos processos ingressem no sistema penal, bem como promove pacificação social e sentimento de justiça naqueles que, por meio da exposição de seus anseios e angústias puderam adotar solução consensual acerca do problema os uniu.

O sistema de justiça penal pauta-se na racionalização jurídica de conflitos, configurando uma visão abstrata e míope dos embates humanos, e desconsiderando a complexidade das múltiplas causas e implicâncias do ato delituoso na vida dos indivíduos. (2020, BONAVIDES e SILVA).

A racionalidade do processo penal clássico tem ofensor e vítima como fornecedores de elementos probatórios destinados ao juiz da causa, representante do monopólio estatal de uso da força e da aplicação do direito ao caso concreto, característica que subtrai de ambos a possibilidade de contribuição para o desfecho da causa, cabendo apenas a um ou ao outro a garantia de recorrer do pronunciamento do Estado-Juiz.

Já no modelo restaurativo, ocorre justamente o contrário, de forma que a atuação estatal é abreviada, permitindo-se às partes apontar a direção para a qual pretendem ver a reparação e a restauração de seus interesses, em um ambiente despido das pressões e formalismos do processo penal clássico.

Quando se observa, por exemplo, que a Lei nº 9.099/1995 possibilita que nos processos iniciados mediante queixa seja, previamente ao recebimento da própria querela, re-alizada a conciliação entre vítima e ofensor (arts. 72 e 73) existe aí um gancho para que se vislumbre no processo penal uma pre-ocupação declarada em promover a pacificação social, de um modo diferente daquele que se dá por meio da aplicação de pena. (2020, BONAVIDES e SILVA).

Dessarte, a Lei nº 9099/1995 coloca-se no ordenamento jurídico brasileiro como um importante instrumento de concretização da justiça restaurativa e serve como importante marco para que o aludido modelo restaurador seja maturado e ganhe cada vez mais importância na modernização do sistema de persecução penal pátrio.

CONCLUSÃO

A importância da vítima ao longo da história transformou-se ao longo de fases de protagonismo e de abandono, sendo redescoberta recentemente, sobretudo em virtude do advento da vitimologia, cujos notáveis resultados serviram de mola propulsora para a percepção da sociedade e do Estado acerca das necessidades da vítima de delitos.

Desde a vitimologia primitiva e seu desenvolvimento, tornou-se perceptível que o conflito penal envolve também a figura da pessoa vitimizada, ou seja, que sofre a agressão ao seu bem jurídico e que esta não pode ser silenciada pelas instâncias formais de controle da criminalidade.

Reveste-se de clareza o fato de que a vítima é parte indissociável desse conflito e como tal merece atenção do Estado no sentido de receber a devida proteção e amparo.

Nesse passo, diplomas legais vocacionados à maior participação da vítima foram editados e reformas legais realizadas, no intuito de harmonizar o direito pátrio com as tendências internacionais acerca do tema.

A doutrina da Justiça Restaurativa coloca-se em posição de destaque no que tange à participação da vítima no deslinde da causa penal, notadamente porque promove o sentimento de justiça e pacificação social.

Ao se permitir que vítima e ofensor possam juntos revisitar e ressignificar o evento delituoso, abre-se caminho para que tanto um como outro possam melhor compreender os fato que protagonizaram e, assim, busca-se de um lado a devida reparação e tratamento da vítima e de outro a atividade repressora na sua exata medida de razoabilidade e de prevenção de novas condutas delitivas pelo agressor.

Essa via de mão dupla representa a modernização do processo penal e a reserva do processo penal clássico para aqueles delitos para os quais a aplicação da justiça restaurativa se faz impossível ou mesmo inócua.

Dessa forma é propiciada a redução de processos perante o Poder Judiciário e sua ocupação clássica com os crimes que demanda efetiva aplicação do rito mais moroso no qual se busca apenas e tão somente a aplicação do direito ao caso concreto.

A junção da Justiça Restaurativa com a sistemática dos juizados especiais só traz vantagens à sociedade, que obtém a rápida e consensual solução da demanda, ao mesmo tempo que permite aos envolvidos no evento criminoso a construção da solução a ser dada ao caso concreto.             

 

[1]                  Art. 245. A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito.


Note e riferimenti bibliografici

REFERÊNCIAS

ACHUTTI, Daniel; DIVAN, Gabriel Antinolfi; SILVA, Mário Edson Passerino Fischer da. Justiça restaurativa e a perda superveniente de justa causa para a persecução penal: uma releitura a partir dos contornos constitucionais, dos fundamentos da punição e da emergência da perspectiva restaurativa no âmbito criminal. (2020).

BONAVIDES, Samia Saad Gallotti; SILVA, Mário Edson Passerino Fischer da. As práticas restaurativas como uma alternativa à persecução penal: da ressignificação do caso penal a uma necessária concretização do princípio da ultima ratio (2020).

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         . Lei nº 9.099 de 26 de Setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm>.

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